O falso livro de férias


Uma pessoa olha em volta na praia e não vê um inocente lusitano a ler um livro . Podia ser daqueles livros leves , ou ultraleves , ou quadrados , ou mesmo quadradões , mas , caramba , seria um livro , um livrinho , essa coisa recheada de páginas e, com sorte , de algumas ideias . Nada. Poderia afirmar-se que, este ano , as praias a sul estão vazias por causa da crise mas , caramba , sempre sobra alguém , sempre sobram umas familias portuguesas que teimamosamente insistem em desafiar a recessão e em investir numa dose de ameijôas e numas gambas cozidas à beira-mar . Ou numa sandes de atum . Nisso , investem . O que não investem é um cêntimo em literatura e pensamento . Todos os anos os jornais e revistas gastam as meninges a elaborar questionários sobre os livros de férias , e sobre o que os criticos levam para férias , mais para as pessoas famosas e as "boys" e os "girls" do social-televisivo-clubistico . E todos os anos as respostas levar-nos-iam a pensar que Portugal tem uma das sociedades mais cultas da Europa , porque as respostas são do melhor ele é Pessoa , ele é Eça , ele é Saramago , ele é Lobo Antunes , ele é Sophia , ele é poesia , ele é Garcia Márquez , ele é tudo . Depois, vai-se a ver , na esplanada e no café , no toldo e na cadeira de listras azuis , na rede e na piscina , o que o Português tem na mão é uma revista com fotografias da página inteira e duas linhas de texto. O que ele ( ela , elas é que lêem , eles nem tentam ) está a ler é a entrevista do futobulista casado com a modelo que afirma o nosso casamento está para durar ou este filho é o sonho com que sempre sonhámos . E está feita a literatura . Nem um Paulo Coelho , para disfarçar . Em compensação , o inglês e o alemão e o holandês estão sempre agarrados ao seu livro monobloco , edição de bolso , (...) Um livro implica leitura , que implica tempo de leitura , que implica maior concentração e atenção , e algum esforço mental , alguns neuróneos a trabalhar . Durante o ano , o português já lê menos de um livro (...) , sentir-se-ia desonrado e traído no seu direito a férias pagas se obrigasse a trabalhar uma ínfima parte do seu corpo . Por isso , os neurónios descansam á sombra da bananeira , comum chapéu de palha na cabeça e um copo com palhinha nas mãos . Alguns destes neurónios nunca trabalham (...) e preferem esta vida a qualquer tentativa de raciocinio inteligente . Dar-lhes um livro para ler nas férias seria insultá-los , e ao seu proprietário , o português médio que se solta as sinapses com o futebol .
É tão raro ver uma pessoa a ler neste país onde não acontece nada que quase nos sentimos tentados a fazer-lhe um interrogatório policial e a acusá-la de práticas ilicitas . Aliás , os livros que se vendem bem , neste país são também os livros onde não acontece nada , aqueles que se didilham do princípio ao fim sem encontrar a sombra de uma ideia . Ler cansa-me , dizem os não leitores . Não tenho paciência , dantes lia mas deixei de ler , são as respostas cintilantes que invariavelmente se obtêm num pequeno inquérito . Como é que esta gente fez a quarta classe ? Não lendo , justamente . O mundo está todo feito para pessoas que não lêem , a não ser as mensagens de telemóvel . E deve haver os que falam sempre ao telefone para nunca terem que escrever ou de ler ou o que quer que seja . Não consigo ler , deixei de ler há anos e nunca mais recomecei , dizem com um certo orgulho , (...) Esta desolação faz com que uma leitora compulsiva se sinta muito só na praia , rodeada de "Lux" e da "Caras" e da inefável "Hola" e de titulos vermelhos (...) evidentemente , dentros dessas revistas que toda a gente lê tambem só existe gente que nunca lê. (...) Um livro é neste mundo cor-de-rosa uma aberração . Mesmo que seja um livro cor-de-rosa .
Os Portugueses não percebem que , enquanto não aprenderem a ler , aprenderem português e matamática , aprenderem a pensar e abstrair , nunca passarão disto , da crise , da baixa produtividade , do subsídio , da causa da Europa , da cepa torta , Não percebem que têm de se esforçar , que ler é como andar de "jet-ski" é preciso aprender , tentar , errar , tentar de novo , até chegar ao prazer de ler . Já o Eça contava que o "Daily Telegraph" discutia em artigo de fundo se seria possivél sondar a espessura da ignorância lusitana . Tais observações , além de descorteses , são decerto perversas . Mas a verdade é que numa época tão intelectual , tão critica , tão cientifica como a nossa , não se ganha a admiração universal , como nação ou individuo , só com ter prepósito na ruas pagar lealmente ao padeiro , e obdecer de fonte curva , aos editais do Governo Civil . São qualidades excelentes mas insuficientes . Requer-se mais : requer-se a fonte cultura , a base cientifica (...) Eu não reclamo que o país escreva livros , ou que faça artes : contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos , e que se o interessasse pelas artes que já estão criadas .
O problema é que escrevemos os livros e fizemos as artes , mas não lemos os livros que estavam escritos e não nos interssámos pelas artes que já estavam criadas . Chama-se a isto Falta de cultura !

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